quarta-feira, 30 de dezembro de 2009

Agora de Alexandria

Os filmes de época têm a particularidade de me distanciar bastante do enredo, uma vez que passo o tempo todo a pensar “Tanto drama para quê? Esta gente já está toda transformada em pó.” Depois ocorre-me que os meus dramas serão pó daqui a mil anos e entre uma coisa e outra acabo por me concentrar nos cenários, nos ângulos de filmagem, na luminotécnica e nas particularidades linguísticas dos discursos e acabo por perder o fio à meada.

Ontem calhou ir ver o “Agora”. Não sabia nadinha sobre o filme, mas uma amiga tinha-mo recomendado, com o argumento subjectivo de que era fabuloso e gostava de o ver outra vez. Não entendo porque carga de água ela o quer ver outra vez. É um filme que incomoda imenso, tem cenas violentíssimas e o pior é que a ideia de que foi há quase 2000 anos que tudo aconteceu não nos traz grande conforto.

A acção desenvolve-se em torno da Biblioteca de Alexandria, na altura da decadência do Império Romano e da ascensão do cristianismo, e foca uma mulher, que existiu deveras, chamada Hypatia, uma filósofa pagã, que tinha uma obsessão pelo saber que, de certa forma, endeusava. No meio do colapso de uma cultura e da ascensão de um poderio religioso que iria marcar o milénio que se seguiu, esta sábia preocupava-se com as rotas dos planetas e com a organização dos céus, avançando teorias que só seriam redescobertas 1200 anos mais tarde. Persistente como um cego teimoso. Não sei se a luminotécnica estava no seu melhor, porque não me abstraí do enredo. Não era possível. O fanatismo religioso dominou-me as retinas e os apedrejamentos de cristãos, judeus e romanos não me permitiram a constatação de particularidades linguísticas relevantes. Ok, corria o ano de 391, já tudo aquilo é pó e estou fartinha de saber que, vaga após vaga de catástrofes naturais e de exércitos de culturas diversas, a Biblioteca de Alexandria foi sendo destruída, até ao golpe final dado pelos Árabes. Mas há algo de obviamente actual naquilo tudo que perturba e que vai para além das evidentes tensões religiosas do nosso quotidiano: o desprezo pelo saber e pela vida que têm os fanáticos ignorantes, o desejo de poder que move os homens, a busca de respostas para os grandes e pequenos enigmas do universo e, sobretudo, a ideia de que tudo aquilo que nos separa uns dos outros não nos torna diferentes uns dos outros. Não há heróis nesta história e a Hypatia aconteceu aquilo que a História registou.

Por definição uma narrativa tem sempre uma moral. Eu não sei bem qual é a que “Agora” encerra, talvez não haja moral nenhuma, talvez seja, como diria Homer Simpson, “just a bunch of things that happened”, ou talvez esteja nas palavras de Davus, o escravo que se tenta encontrar como homem ao longo de todo o filme: “Fui perdoado e agora não consigo perdoar.” Ou nas sábias palavras de Camões: Ó grandes e gravíssimos perigos! Ó caminho de vida nunca certo: Que aonde a gente põe sua esperança, Tenha a vida tão pouca segurança! Onde pode acolher-se um fraco humano, Onde terá segura a curta vida, Que não se arme, e se indigne o Céu sereno Contra um bicho da terra tão pequeno? Talvez isto justifique a visão da Terra a partir do espaço e todos os ângulos em picado. É que os cenários e os pormenores de realização não me escaparam… E não quero ver o filme outra vez. Já sei que as órbitas dos planetas são elípticas.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

O que queria neste Natal

Ricardo Reis, Sophia, Startrek e Schwarzenegger

Ricardo Reis, o heterónimo da ataraxia, propõe uma filosofia de vida assente na calma contemplação do fluir dos eventos, sem esforço nem perturbações, pois somos impotentes perante a passagem do tempo, “o deus atroz/ que os próprios filhos/ devora sempre”. Em sua homenagem escreveu Sophia um poema belíssimo, que na minha humilde opinião convida à vida e não à contemplação:

Não creias, Lídia que nenhum estio
Por nós perdido possa regressar
Oferecendo a flor
Que adiámos colher.

Cada dia te é dado uma só vez
E no redondo círculo da noite
Não existe piedade
Para aquele que hesita.

Mais tarde será tarde e já é tarde
O tempo apaga tudo menos esse
Longo indelével rasto
Que o não-vivido deixa.

Não creias na demora em que te medes.
Jamais se detém Kronos cujo passo
Vai sempre mais à frente
Do que o teu próprio passo

Dual, de Sophia de Mello Breyner Andresen

Sim, “Jamais se detém Kronos”, esse deus atroz. Não o podemos combater. Quando Kronos ainda não tinha avançado tanto, eu era fã do Startrek, não cheguei a ser trekkie, mas andava lá perto, com cumprimentos como o popular “live long and prosper” ou o célebre “ka’plah” klingon. OK, OK, talvez não seja assim tão célebre. Apesar de o meu entusiasmo trekkie ter diminuído, continuo a encontrar nos recantos da minha memória pequenas frases de filmes e de episódios que corroboram muitas das filosofias de vida de autores consagrados, o que, a meu ver, comprova que a série até era uma coisa de gabarito. Uma delas ficou-me sempre no ouvido: “time is the fire in which we burn”, tirada de um poema de Delmore Schwartz e dita por Soran, que tentava combater esse deus atroz, ainda que para tal tivesse que destruir tudo o que existe. Não o conseguiu, evidentemente, o Capitão Kirk derrotou-o e salvou o universo, embora tenha morrido para o fazer. Ironias.

É realmente lamentável que Kronos não se detenha, porque os seus efeitos são absolutamente devastadores. E embora não adiante lutar, como diz Sérgio Godinho:

Mas como se costuma dizer
tem que ser
porque parar, nunca
Ficar parado?
Antes o poço da morte
que tal sorte

sábado, 19 de dezembro de 2009

There is no spoon!

Spoon Boy: Do not try and bend the spoon. That's impossible. Instead only try to realize the truth.
Neo: What truth?
Spoon Boy: There is no spoon.
Neo: There is no spoon?
Spoon Boy: Then you'll see that it is not the spoon that bends, it is only yourself.


terça-feira, 8 de dezembro de 2009

Dias em que as coisas mudam


Sempre fiz praia em Gaia. Os meses de Verão foram passados, desde que me conheço, entre a Aguda e Salgueiros. Vou alternando as praias: ora Valadares, ora a Madalena, ora a Aguda... Há quem prefira uma, há quem prefira outra e eu, desde que seja na minha terra natal, posso ir para qualquer uma delas. Conheço-lhes as rochas, os contornos, os sítios onde se apanham mais beijinhos... Sei onde estão os surfistas, os jogadores de vólei, onde param os cães mais e menos agressivos, conheço as tábuas dos passadiços, por onde corro ao final do dia, quando a meteorologia o permite. Na minha memória tudo está sempre onde deve estar.
O tempo não me tem favorecido as corridas à beira-mar, chove, faz frio e a luz do dia desaparece muito cedo.. Há algum tempo que não vou correr e ver o mar. Fui hoje, fazia-me falta e, no meu percurso, deparei-me com as alterações do Inverno. E não só nas cores do mar e do céu, mas nos próprios contornos da corrida que me aguarda. Tudo muda e até o caminho mais conhecido pode ficar diferente de um dia para o outro.

sábado, 5 de dezembro de 2009

O Google faz de nós estoopidos?

Umberto Eco é, entre outras coisas, o autor de um dos mais fascinantes romances do século XX - "O Nome da Rosa". É também um estudioso dos fenómenos ligados à comunicação de massas, pelo que a sua opinião é sempre de considerar.
Há já algum tempo que conclui que o sistema de Ensino - o português, evidentemente, que é o que conheço bem - está completamente desajustado. Os miúdos manobram as ferramentas informáticas com uma destreza verdadeiramente impressionante. As matérias das aulas e, sobretudo, a forma como são trabalhadas fazem de nós, por vezes, verdadeiros pitecos a tentar acender uma fogueira com duas pedras, tendo o isqueiro mesmo ali ao lado. Tenho usado as novas tecnologias nas minhas aulas, de forma pensada e reiterada. Contudo, tenho algumas dúvidas em relação à sua eficácia. É certo que os meus jovens alunos se maravilham perante o uso do quadro interactivo e é também certo que apresentar "O Sermão de Santo António aos Peixes" via documentário da RTP é muito mais interessante do que lê-lo apenas, ou até ouvi-lo inflamadamente declamado por Ary dos Santos. O meu problema reside no binómio eficácia/diversão. Há muitos anos atrás li um ensaio que defendia a ideia que nós não retemos nada daquilo que vemos na TV, que ver televisão era uma espécie de sono, cujos sonhos se iam desvanecendo . Eu creio que é isso que acontece nestas aulas interactivas e multimédia. Há poucas semanas, li que os jovens ingleses, numa grande percentagem, não sabiam quem era Adolf Hitler e pensavam que era um treinador de futebol. No entanto, basta-lhes um clique para terem acesso a 1 900 000 entradas sobre o Fuhrer.
Uma tragédia tem, por definição, um herói trágico, aquele que sem consciência do seu destino caminha inexoravelmente para a catástrofe. Eu não sei bem quem é o herói, mas quando peço aos meus alunos para irem ao centro de recursos seleccionar um soneto camoniano de que gostem, eles regressam frustrados e de mãos vazias, porque a Internet não está a funcionar, ou porque os computadores estão todos ocupados. "E então os livros??? Estão lá dezenas de livros de Camões à vossa espera!!" "Ó setora, por amor de Deus!".

Quem souber inglês e gostar de coisas bem esgalhadas é só ir a http://www.theatlantic.com/doc/200807/google

"And what the Net seems to be doing is chipping away my capacity for concentration and contemplation. My mind now expects to take in information the way the Net distributes it: in a swiftly moving stream of particles. Once I was a scuba diver in the sea of words. Now I zip along the surface like a guy on a Jet Ski." Nicholas Carr

quinta-feira, 3 de dezembro de 2009

Bye bye Mauresmo

Amelie anunciou hoje que deixava o ténis profissional. Vou ter saudades daquela esquerda a uma mão e do ténis aguerrido e diversificado que hoje pouco se vê no circuito feminino. Valha-nos o regresso anunciado de Justine.

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

Ai a chuva no dia da Restauração!

Ontem fui fazer umas fotos. Fotografias do Verão que ainda não tinha mandado imprimir nem organizado nos álbuns. Hoje passei o dia encafuada em casa, sentada no sofá a ganhar musgo, com o portátil ao colo, a estabelecer de forma inequívoca a diferença entre a conjunção coordenativa e o conector coordenativo, com a janela aberta para deixar entrar o menor dos raios de sol que brilhasse por entre as macabras e incessantes gotas de chuva. Não brilhou nenhum. Olho para o relógio e lembro-me que a esta hora punha a coleira à cadela e calçava as Asics para ir dar a minha corrida ao pôr-do-sol. Olho com ódio a bicicleta estática e tento decidir se continuo a criar musgo ou se lhe dedico 20 minutos...