domingo, 10 de outubro de 2010

Do desassossego

O “Livro do Desassossego” não é, em boa verdade, um livro. É um conjunto de fragmentos de ideias, sonhos, reflexões, questionações… Não há propriamente uma ordem para a sua leitura. Nele colhe-se uma ideia, descobre-se uma reflexão, pesca-se um sonho. Redigido por um insignificante ajudante de guarda-livros, revela-se uma pequena bíblia que pode (des)orientar um qualquer acólito.

O “Filme do Desassossego” tenta ambiciosamente apropriar-se destes escritos e, com um pequeno fio narrativo, apresenta-nos um Bernardo Soares que percorre melancolicamente as ruas de uma Lisboa sórdida e decadente, preso num interstício entre aquilo que é a realidade externa e aquilo que não é. Os seus pensamentos são os pensamentos de todos nós, e, portanto, qualquer um dos transeuntes pode articulá-los, ainda que não exista. Fadistas vagabundos e aciganados, gays, strippers, cocainómanos, sem-abrigo, vadios de taberna, miseráveis do high-life, não falta nada neste filme. É a tentativa de chegar à condição humana pela decadência da individualidade humana. Esta visão da cidade de Pessoa coincide com aquilo que eu sinto de cada vez que sou obrigada a lá ir: um antro de perversões, mais ou menos escondidas. Impossível a simpatia e a empatia. Se Soares recusa o colectivo, porque ele é uma prolixidade de eus, que vive a vida do lado de fora, até ser apenas aquele nada é, porque nada foi, eu recuso este filme, que me põe a ouvir do lado de fora aquilo que já pensei e ainda não pensei. Cansa e é todo ele um exercício de perversões da inteligência que não faz jus à obra de Soares. Não com um protagonista aleijado que percorre a vida e a cidade como quem se ressente da vida e da cidade. O que eu até acho compreensível, com uma cidade como aquela Lisboa. A fotografia é bonita, contudo, apesar dos olhos arregalados.

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